sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Eu não voto

E também não queria escrever sobre o referendo, já que não voto, e acima de tudo porque este assunto me incomoda até às entranhas. No entanto, já que tenho que apanhar com as opiniões de toda a gente, então registo também aqui a minha.
Preferia que este assunto tivesse sido evitado. Que os deputados se decidissem, de uma maneira ou de outra, que fizessem o seu trabalho, que nós também não lhes vamos perguntar como é que se faz o nosso. Eu não queria saber se os meus amigos/conhecidos estão pelo sim ou pelo não. Infelizmente, isso afecta-me mais do que eu podia imaginar. E afecta-me mais hoje, que este assunto me interessa menos do ponto de vista pessoal, do que me afectou há uma data de anos, quando houve o primeiro referendo. Estes dias, ando um bocado mal disposta. E nem sequer tenho visto nada na televisão sobre o assunto - nem debates, nem tempos de antena, nem reportagens, nem nada que se pareça. É para isto que serve o comando, para evitar assuntos me incomodam.

Eu, mulher, portuguesa, posso abortar, sem ir contra a lei. No país onde vivo tenho este direito. Mas não posso votar no referendo. No entanto, esta lei afecta as mulheres do meu país - as minhas irmãs, as minhas sobrinhas, as minhas netas, as minhas primas, as minhas amigas (até aquelas que ainda não nasceram). E afectam os homens do meu país - os bons pais e os maus pais, os que querem muito ter filhos e aqueles que não querem saber. Como tal, também tenho uma opinião em relação a este assunto.

Para já, uma coisa é certa. Se o não ganhar, vai ficar tudo na mesma. Isso não quer dizer que não haja abortos, ou que deixe de haver abortos - significa que continuará a haver uma indústria florescente de pessoas com ou sem escrúpulos, que prestarão ilegalmente um serviço, que não terão as condições necessárias para prestar esse serviço, que não são fiscalizados, que não pagam impostos, e que não serão responsabilizados quando as coisas correrem mal. Quem tiver que abortar, fá-lo-á independentemente de a lei o permitir ou não. Com risco da própria vida. Sem apoio, com vergonha, com medo, como se já não bastassem as possíveis sequelas físicas e psicológicas.
Ao votar não, não se vai impedir ninguém de abortar, antes apoiar-se-á que haja pessoas que continuem a abortar sem o mínimo de condições de higiene e segurança, correndo o risco de morrer. Ao votar não, está-se a compactuar com o mercado negro do aborto, tanto das clínicas privadas como de outros sítios onde se aborta, que apenas têm a ganhar com terem um negócio ilegal, que não é fiscalizado, não têm que cumprir práticas de segurança, não são responsáveis por aquilo que eventualmente corra mal, e que, ironia das ironias, nem sequer pagam impostos. Ao votar não, está-se a contribuir para que continue a haver duas classes de cidadãs portuguesas, as que têm dinheiro para irem abortar ao estrangeiro (Badajoz é tão perto, e o anúncio de "tratamento voluntário da gravidez" vem todos os dias nos jornais), e as que, por não terem dinheiro, irão parar a um qualquer vão de escada, dando o pouco dinheiro (pouco é como quem diz, ouvi falar em 300 euros e mais (link 1, link 2), sem condições nenhumas) que tanta falta lhes faz, a quem lhes fizer o desmancho, e com sorte, escaparão com vida. Ou então, por menos dinheiro, compram os medicamentos abortivos no mercado negro, suportam as dores até não poderem mais, ou até alguém as levar ao hospital, e talvez acabem num tribunal, ou na cadeia.
Se o sim ganhar, talvez estas coisas, com o tempo acabem. Ao votar não, não se vai obrigar nenhuma mulher que não queira ter um filho, a tê-lo, obrigar-se sim algumas mulheres a correr risco de vida e a terem que se esconder.
Esta lei é para todas as mulheres. Não é só para as responsáveis, ou só para as irresponsáveis, não é só para as que têm boas condições de vida, não é só para as que têm más condições de vida, não é só para as que têm parceiros responsáveis, não é só para as que têm parceiros irresponsáveis, não é só para as que têm uma família, não é só para as desamparadas da vida. Não é uma lei só para as mulheres de trinta anos, com a vida organizada, que mesmo que tenham um "azar" poderiam sempre criar o filho, mesmo sozinhas. Não é uma lei só para as miúdas da faculdade, que talvez pudessem continuar a estudar, terminar o curso, e, com alguma ajuda, ter uma família um pouco mais cedo, ainda que parte da família lhe sugira que faça um aborto. Não é uma lei só para as adolescentes que engravidam porque não sabem bem o que andam a fazer, ou porque os namorados as pressionaram, e que um dia descobrem desesperadas que o período não veio, ou até nem descobrem porque nunca tinham tido o período, e depois morrem, não de vergonha, mas por causa da vergonha, como aquela miúda de 14 anos que fez um aborto e pagou com a própria vida (link). A lei não é só para as mulheres católicas, a lei não é só para mulheres ateias, a lei não é só para mulheres agnósticas, a lei não é só para mulheres budistas.

Um dia, a maior parte de nós teremos filh@s, por opção própria. E é também a pensar neles que me dói toda esta batalha por uma coisa que cá não é nenhum bicho de sete cabeças. Esta lei não é para mim. Alterada ou não, a mim não me faz diferença. Já tenho idade para ter juízo. Se engravidar, por acidente, ou de propósito, a minha vida muda, mas eu sei o que fazer. Se engravidar, e o meu namorado der à sola (ok, isto é mesmo um cenário muiiiito hipotético), isso para mim não seria um problema que me fizesse pôr em causa a gravidez. Tenho a vida vida resolvida. Mais um filho, menos um, não me cria qualquer espécie de dificuldade. Mas a minha vida não foi sempre assim. E a dos outros também não é. Em cada vida, há alturas em que estamos mais sozinhos, mais desamparados, em que tudo corre mal, em que não temos como nos sustentar a nós, quanto mais a mais um. Em que não temos emprego, nem ninguém que nos pague as contas, ninguém que nos fique com o miúdo quando precisa(r)mos. E para piorar tudo, tivemos um acidente. Felizmente eu nunca tive que recorrer ao aborto. Mas conheço quem o tenha feito, e as razões para o ter feito, e dou-me por feliz por não ter estado no lugar dessas mulheres. Pois eu possivelmente, naquela situação, teria feito o mesmo.

Um último ponto. Se o não ganhar, espero que a lei seja cumprida. Que as mulheres apanhadas a abortar vão para a cadeia. E que acabe a hipocrisia. Porque as leis, não são para fazer de conta. Senão não são leis. São meras indicações.


[ADENDA] Mudei de ideias, e abri os comentários. N
ão garanto que não apague nenhum, mas fica a opção, para quem quiser. Chegados a este ponto, discutamos, então.
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