quarta-feira, janeiro 31, 2007

Recordações

Não me lembro de tudo o que aconteceu há alguns dias, meses, anos. Não me lembro de todos os colegas da escola, lembro-me de alguns que apareceram a meio de um periodo, e não faço ideia quanto tempo me fizeram companhia, nem para onde foram depois. Lembro-me de andar à porrada com alguns rapazes, lembro-me de escolhermos as equipas de futebol (primeiro escolhíamos os capitães, que se punha frente a frente e depois, um de cada vez, punham um pé à frente do outro, encostado, e quem pisasse o outro capitão era o primeiro a escolher), e do rapaz que era sempre o último a ser escolhido. Não me lembro do meu primeiro dia de escola, mas lembro-me da minha primeira pasta, e lembro-me da cestinha que a minha mãe me mandava com o lanche - um copo de plástico com tampa e chocolate lá dentro, para misturar com o pacote de leite simples que nos davam na escola, e ainda uma sandes de qualquer coisa. Lembro-me do rapaz da turma da tarde, mais velho, que queria ser meu namorado, e com quem fazia corridas de bicicleta que eram cronometradas sem relógio - eu perdia sempre, a não ser que realmente arranjássemos um relógio para contar o tempo. Lembro-me da miúda que um dia chegou vinda de outra escola, muito longe, e de quem fui a primeira amiga, e por causa de quem levei algumas das pouquíssimas reguadas que apanhei na escola (ainda assim, mais do que as que gostaria de ter levado), por estarmos a falar. Lembro-me de esfregar a mão na perna metálica da mesa, depois da reguada, e ficar contente por ser Inverno, pois assim a perna estava fria e aliviava a dor.
Lembro-me da minha mana mais pequena ainda usar fraldas, e de a minha mãe me pedir que as fosse buscar, ao gavetão de baixo do meu guarda-fatos. E lembro-me de nos deixarem, às filhas, em casa dos avós, para irem não sei onde.
Lembro-me de fazer cinco anos, de receber roupa de prenda e detestar, e ainda uma data de livrinhos de histórias que li, reli, e de onde mais tarde recortei os desenhos e colei noutro lugar. Lembro-me de, também por essa idade, a minha mãe uma vez me ter deixado sozinha em casa, à tarde, porque eu estava a dormir, e quando ela voltou, tinha eu acabado de acordar, ela me perguntar se tinha lido a mensagem que ela me tinha deixado - eu nem tinha visto nada. Lembro-me de ter pesadelos com o Joe Índio, e lembro-me de um pesadelo recorrente, em que passava o tempo todo a fugir não sei de quê, e ao fugir passava num caminho que tinha um carocha vermelho. E lembro-me de uma vez ter visto um filme com canibais e depois sonhar que uns canibais me queriam comer, e de eu fugir , fugir, fugir, os canibais apanharem-me e levarem-me para a "casa" deles, e depois a canibal que ia fazer a comida pôr-me em cima de uma mesa, e enquanto começava a preparar o almoço - eu - os bichinhos comerem-me toda.
Lembro-me de, teria aí uns 4 anos, me divertir com a minha irmã a fazer de conta que escrevíamos grandes cartas, e onde a única coisa realmente legível, a única coisa que realmente sabíamos escrever, era "RTP". E lembro-me da empregada ter um filho chamado Valentim, que era o nome de tinta para pintar casas.
Ainda antes disso, lembro-me de a minha mãe arrumar os produtos de toilete na malinha de "fim de semana", quando íamos a casa da minha avó. E lembro-me de perguntar se os meus tios iam lá estar, pois isso era brincadeira garantida. Lembro-me de o meu tio me levar a passear com os amigos dele, quando eu era mesmo muito pequenina, de me levar ao café e me deixar ficar a brincar com as máquinas (sem moedas, mas mesmo assim), e de me levar ao parque para andar de baloiço.
E antes disso, não me lembro de nada. Não me lembro de mudar de localidade, de mudar de casa, da minha irmã nascer.
Não me lembro de nascer, não me lembro de começar a existir, não me lembro de coisas que sei que aconteceram. E pergunto-me, será que existi, nesses momentos de que não me lembro? Claro que existi, mesmo que eu não me lembre, havia outras coisas e pessoas que garantem que eu estava lá, a própria vida traz-me a certeza de que existi. Ainda assim, e antes?
4 comentário(s)

4 Comentário(s):

Mesmo que não tenhas existido.. lembras-te que sim e isso deve chegar.

By Blogger ups, at 9:35 da manhã  

O meu problema é o inverso - se não me lembro de ter existido, existi mesmo? No limite, houve uma altura em que os meus átomos estavam espalhados por uma data de sítios diferentes, e como tal eu não tinha consciência de "mim". Essa parte é que me intriga.

By Blogger snowgaze, at 5:56 da tarde  

Nao sei do resto, mas é um post genial...

By Blogger Rita Maria, at 4:08 da tarde  

Eu tambem tive pesadelos com o Joe o Indio. E com os romanos (do Asterix e Obelix), que tinham espadas muito grandes e eram carrancudos. Belo post!
alvaro

By Anonymous Anónimo, at 2:22 da tarde  

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