Já lá vai algum tempo desde a última vez que tive o desprazer de me obrigar, por motivos de força maior, a monologar consigo. Sim, monologar, porque para dialogar consigo seria necessária uma besta, que é o único animal que compreende o seu linguajar.
Soube por vias travessas, na avenida que vai dar à praça da Feira, que se prepara para usurpar os terrenos a Norte do meu castelo de Terreola. Pois fique sabendo que esses terrenos sao meus de direito e que nao pretendo abdicar deles sem lhe dar luta, da qual sairei, inevitavelmente,
Com os melhores incumprimentos,
Inimigo Figadal
Caro Inimigo Figadal,
Ler a sua carta deu-me logo a volta aos fígados, isto porque estava a comer um manjar dos deuses que o meu novo cozinheiro preparou. Infelizmente tive que o despedir pois afinal ele é um incompetente e andava a tentar envenenar-me que eu bem sei. Vossa excelência deve-me ter confundido com o míldio, que ataca as uvas com que os seus criados, cujo sangue é igualzinho ao que corre nas veias do meu caro inimigo, produzem aquela mixórdia a que chama vinho mas que mais nao é do que o amargo sumo de uva da pior qualidade misturado com água, que o vinho a martelo é a sua especialidade, e ainda com chulé do mais mal cheiroso que se possa imaginar.
Quanto ao martelo com que me ameaça, tenha cuidado, nao lhe vá cair no pé, e piorar ainda mais o estado já de si deplorável daquela unhaca nojenta que já teve todas as cores desde amarelo-bílis até ao preto mais retinto, e à qual o meu caro inimigo insiste, na sua tonteria, em atribuir poderes especiais. Só se for o poder de enojar ao ponto de causar vómitos a toda e qualquer pessoa ou animal que vislumbre tal aberraçao da natureza.
Aconselho-o a nao recusar a visita do charlatao curandeiro que se auto-apelida de médico quando todos os dias lhe bate à porta, e a aceitar as mezinhas que ele lhe traz. Tome-as, nao receie, e verá que a vida se tornará mais agradável, cor de rosa, até. Se por acaso vir umas nuvens amarelas ou uns elefantes azuis, nao se apoquente, a única coisa que tem a recear é a luz branca que indica que vai desta para melhor, o que infelizmente ainda deve demorar uns bons anos. De qualquer forma, tenha cuidado com os ratos de esgoto e outras ratazanas imundas com que partilha o palheiro a que chama castelo e que lhe têm vindo a contaminar a comida, e os remédios. É por isso que o sangue lhe escorre das veias, os infames roedores deram-lhe umas dentadas e o meu caro inimigo nem sentiu nada. Sim, o meu caro inimigo anda a alucinar e nem faz a menor ideia.
Com os piores cumprimentos,
Inimigo Fidagal. 2 comentário(s)