quinta-feira, fevereiro 17, 2005

A mãe perfeita

A Newsweek desta semana lança na capa o tema da mãe perfeita (notícia via melhor que prozac).
Não percebo esta obcessão com a mãe perfeita (principalmente quando o pai perfeito é uma figura muito menor, à qual não se dá importância, nem se atribuem tarefas pré-definidas). Lembro-me perfeitamente da minha própria infância, e como os meus pais, perfeitos ou não, trabalhadores e preocupados com o meu bem estar e das minhas irmãs, nos deram tudo o que podiam dar. Isto sem passar por excesso de preocupação (ok, talvez um bocadinho, não podíamos estar numa situação minimamente próxima de algum "perigo" que eles começavam logo a dizer "Sai daí !), e, espero eu, sem sentimentos de culpa por não passarem mais tempo connosco.
Apesar de passar imenso tempo sem os pais, a brincar na rua ou em casa, mas sem eles fazerem parte da brincadeira, nunca senti que me faltasse carinho ou afecto. Não tenho traumas de infância ou adolescência (embora tenha passado boa parte dela a discutir com os meus pais).
Lembro-me em miúda que uma das coisas que mais adorava fazer era ir para o trabalho do meu pai quando não tinha aulas. Lá havia todo o tipo de maquinetas engraçadas entre as quais um afia lápis com uma manivela que estava preso à secretária por um sistema de parafuso e travão metálico, e uma máquina de calcular antiga, com uns botões giríssimos, redondos, onde eu adorava "fazer contas". E conjuntos enormes, com lápis de todas as cores!!!
Detestava que a minha mãe me levasse ao café com as amigas, e mal acabava o meu sumo começava a puxar-lhe o braço para irmos embora. Pior que isso eram os passeios a pé que os meus pais nos obrigavam a fazer com eles nas tardes de verão, para nos impedirem de ficarmos em frente à televisão até às 7 da tarde, hora em que finalmente o calor era suportável e podíamos ir brincar para a rua.
Também gostava de ir para a escola da minha mãe, nas férias escolares, pois havia tantas coisas para brincar - jogos de construções em madeira, livros que eu ainda não tinha lido, e um sem número de coisas que não havia em casa e que na minha escola nunca havia tempo para ver. E claro, enquanto ela trabalhava, eu tinha a vida facilitada para brincar no recreio e arredores, e fazer a vida negra às galinhas, perus, patos e outros animais que por ali andassem.
Passei muitas manhãs e muitas tardes na biblioteca da minha terra, a devorar todos os livros que por lá havia. Adorava os dias em que, como que por milagre, apareciam livros novos (era tão raro!). Ria-me sozinha no meio de uma biblioteca quase vazia quando lia os livros do Asterix ("Estes romanos são loucos!"), ou do menino Nicolau, ou do Emílio na terrina, ou do Salomão e Mortadela, e muitos mais. A bibliotecária frazia a testa, e eu não ligava nenhuma.
Independentemente de tudo, nunca senti que precisava que os meus pais estivessem mais tempo comigo.
Hoje em dia, como mãe, não me deixo entrar em paranóia. O meu filho tem tudo o que precisa para se sentir bem (comida, carinho, brinquedos, e possibilidades de se exprimir e se descobrir como pessoa), mesmo que eu não esteja lá x horas por dia. Não estou em "modo mãe" mal chego a casa e até o menino ir dormir. Há o modo mãe (brincar, ler histórias juntos, tratar da comida e do banho, e mandar fazer isto ou aquilo porque também é importante que ele faça as coisas para crescer) e o modo "estou aqui se precisares de mim, mas se te entretiveres sozinho, melhor que eu agora estou mesmo cansada/tenho que fazer a comida/tratar da roupa, etc.". E há o modo "vamos jogar playstation a dois que desta vez é que eu te vou ganhar", ou o "vamos fazer ski, andar de bicicleta ou de trenó ou de patins porque não podes ficar em casa o dia todo"... Bem, acho que o "modo permanente" é o de amiga, e em background é o de mãe, porque afinal não posso mandar a mãe embora... há sempre uma preocupação quase que inconsciente, se o menino está bem, se comeu o suficiente (não se safa da fruta, ai os legumes que são uma desgraça, e tem que experimentar uma coisa nova de vez em quando). E muitas vezes limitamo-nos a existir, a compartilhar o mesmo espaço sem que seja necessário fazer alguma coisa juntos (estes momentos às vezes vão dar em ver os desenhos animados a dois, que é o mesmo que estar juntos sem estar, mas partilhar mais uma coisa).
Para mim, o importante é que o meu filho esteja feliz (e está), que não se sinta sufocado pela mãe, e que tenha oportunidades de desenvolvimento, quer através de coisas como livros ou jogos, brincadeiras, pinturas ou outras, como através de contacto com outros miúdos ou outros adultos que não eu. Muito daquilo que somos é resultado do contacto com outras pessoas. Muito do que eu digo, escrevo ou penso, é resultado do que ouvi, li ou vi noutras pessoas, desde muito pequenina.
Não tenho o mínimo sentimento de culpar por trabalhar o dia todo (ok, a verdade também é que trabalho muito menos do que teria que trabalhar em Portugal, por aqui são mesmo só 40 horas, e nem mais um minuto). A minha mãe também trabalhava, e as minhas avós também trabalharam. Quando estamos juntos, mãe, filho, e companhia, divertimo-nos e muito. Temos tempo para brincar, e para estar sossegados. Sem stress.
2 comentário(s)

2 Comentário(s):

Uff!
Quando lemos as revistas, assustamo-nos com os pais que elas podem estar a criar...ja os imagino, impregnados em sentimentos de culpa a ler "como brincar com o seu filho-conselhos para uma equilibrada gestao do espaço ludico"...
...eh depois um alivio ver que afinal as crianças ainda estao a ser educadas simplesmente com amor e bom-senso!

By Blogger Rita Maria, at 12:51 da tarde  

Adorei a referência ao endiabrado Emílio (e à famosa terrina :-)

Para relembrar (ou conhecer) esta adorável história para crianças, sugiro que espreitem este novo blog com a 1ª aventura do endiabrado Emílio, Emílio dentro da Terrina, da mesma autora da Pipi das Meias Altas, Astrid Lindgren:
http://emiliodentrodaterrina.blogspot.com

Altamente recomendado ;-)

By Anonymous Anónimo, at 11:29 da manhã  

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