quarta-feira, setembro 15, 2004

O utilizador-pagador

Por Pedro Vitória, retirado dos comentários do blog Barnabé.

Princípio utilizador-pagador ou a lei do mais forte
Se percebermos bem o que este princípio quer dizer, compreendemos que apesar de pretender introduzir um princípio equitativo, esconde o projecto de instalar a desregulamentação selvagem.
Está nele subjacente a ideia de quem tem poder e dinheiro usufrui, quem tem fragilidades económicas, deixa de poder usufruir os direitos que também ajudou a estabelecer na sociedade.
Vou falar do aspecto mais discutível. O pagamento de portagens nas auto-estradas sem alternativas fiáveis para os cidadãos. As chamadas SCUT’S e posso também incluir a CREL, onde já se paga portagens.
Primeiro ponto: As empresas que construíram as auto-estradas de que se falam foram pesadamente financiadas por capitais públicos, vindos ou directamente do dinheiro dos contribuintes ou das contribuições da União Europeia que também derivam dos contribuintes europeus.
Digo isto porque ainda poderia admitir este princípio se se tratassem de projectos de capitais unicamente privados, o que não é definitivamente o caso. Utilizaram em grande medida de fundos do erário público e comunitário. Esta realidade implica obrigações sociais do estado na defesa dos seus cidadãos.
Pode-se esclarecer desde logo que, quando falamos contribuintes podemos quase excluir por completo os empresários, os profissionais liberais e os comerciantes. Veja-se a percentagem das suas contribuições do bolo das receitas orçamentais.A evasão fiscal, uma por fraude outra legitimada por uma legislação permeabilizada pelo legislador, é inegável e de dimensões assustadoras.Por exemplo, mais de 50% das empresas não pagou IRC o ano passado; as profissões liberais - médicos do privado, advogados e outros ainda pagam em média anual quantias irrisórias. Mas, pasme-se, são estes estratos da população que mais usufruem das auto-estradas…
Então, passa-se que os contribuintes que mais investem num projecto público, visto alimentarem o orçamento geral do estado, virão, e têm já nalguns casos, a ter dificuldades em usufruir desse projecto.
Serão antes os que menos contribuem que mais capacidades financeiras terão para o utilizar, talvez também por isso mesmo, por terem menos encargos com os impostos e terem mais possibilidades em acumular capital.
Segundo ponto: a ideia de haver investimento público é a de que, dentro de uma solidariedade nacional, assente na elaboração razoável das prioridades e interesses da generalidade da população, de acordo com a apreciação dos representantes eleitos, se realizem projectos que os privados não fazem por sua própria iniciativa - ou porque não são lucrativos ou por não terem capacidade financeira para tanto e terem de ser realizados com fundos estatais.
Assim, o estado realiza obras que são do interesse nacional retirando verbas do orçamento geral. Estas obras têm de beneficiar todos e não apenas os que têm uma maior capacidade financeira para tal, que repito resulta também, em parte, de não fazerem os descontos fiscais devidos. Perceba-se a injustiça da situação.
Se este princípio iníquo se começar a aplicar como é que as zonas mais pobres e desfavorecidas poderão ter equipamentos sociais? Estes utilizadores nunca conseguirão justificar o investimento necessário. E como se propaga esta ideia, todos começarão a dizer: quem quer serviços tem de pagar!
A solidariedade nacional desaparece. As regiões mais ricas e populosas, com mais votos também, se viverem sob este princípio utilizador-pagador deixarão de aceitar contribuir para as regiões mais desfavorecidas. Estas consequências serão inevitáveis. Mais cedo ou mais tarde, se for este o princípio que utilizemos nas relações sociais e económicas. Mas é isto mesmo que os instigadores pretendem, dividir para conquistar. Se se puserem todos uns contra os outros, poderão prevalecer. Essa é lógica selvagem do mais forte.É claro que uma via rápida para o interior é essencial mesmo que os utilizadores não a paguem por si mesmos, os cidadãos de outras áreas geográficas devem de ser solidários para com eles e através do orçamento geral viabilizar essas obras.
Mas também é verdade que, sendo o trânsito para Lisboa um caos reconhecido, causando sofrimento a centenas de milhares de pessoas diariamente, se exige solidariedade de todos os contribuintes para que uma via que circunde Lisboa exteriormente, CREL, seja o mais utilizada possível, precisamente quando não há alternativas.
O princípio utilizador-pagador é completamente iníquo e não equitativo como aparenta. Quem pode pagar pode utilizar os meios, por exemplo, as auto-estradas, que foram realizados, em grande parte, com verbas do orçamento geral do estado, que resulta, na quase totalidade, das contribuições dos trabalhadores por conta de outrem, que vão ser na sua maioria excluídos, pois, são os que tem o poder de compra mais baixo. Aliás, a própria ideia de estado e orçamento geral só é viável com um forte sentimento de unidade e solidariedade nacional.
Terceiro ponto: este princípio injusto é o maior ataque que se pode lançar à ideia de estado como regulador da economia, promotor do equilíbrio social. É o primeiro passo para a generalização da iniquidade a todas as outras áreas.
O direito à mobilidade dos cidadãos dentro do território nacional está consagrado e deve ser defendido por todos para que exista para todos.
Os que defendem e executam a destruição do estado-providência souberam utilizar e proclamar bem alto este direito de mobilidade quando legislaram que se aplicasse penas de prisão a quem cortasse estradas para protestar ou reivindicar.Defendem a liberdade de deslocação dos cidadãos para lhe retirarem o direito de serem ouvidos.Agora, não lhes interessa que se restrinja o direito de uma grande parte de utilizarem as vias de comunicação, que também foram construídas com capital que contribuíram fiscalmente, por não terem capacidade financeira para tal.Começam, nesta área, para depois generalizarem. Quem quiser utilizar as instituições de saúde, de educação, de direito. PAGA!
Gostava também de avançar uma ideia, em jeito de conclusão. É urgente que se faça uma nova e especial "concordata". Assim como foi necessário separar o domínio secular do civil, com regras claras, também agora é essencial separar definitivamente o público do privado.
A iniciativa privada tem de ser verdadeiramente privada, não pode ser apoiada de nenhuma forma pelo estado. O privado visa o lucro, portanto não pode ser ajudado, a sua recompensa será o lucro que obterá e nunca os subsídios e os apoios sob várias formas que poderá obter do estado, ou seja, dos contribuintes em geral.
Podem conseguir os apoios sem sequer o merecerem, através de tráfico de influências ou mesmo de suborno. Pois aí o mecanismo regulador do mercado não funciona de modo puro e as vantagens do sistema privado nem sequer se aplicam verdadeiramente. Não há sequer uma genuína concorrência. A apregoada grande vantagem do mercado.
Esta ideia estranha que se está a introduzir na política europeia de que quanto aos direitos dos cidadãos assegurados pelo estado tem de se ser ultra-liberal, quanto menos estado melhor, mas cada vez mais pedem dinheiro do estado para apoiar empresas privadas.
A economia portuguesa sem o investimento público é absolutamente medíocre como temos visto. Os empresários anseiam por mais subsídios estatais.
Unicamente associações ou instituições com interesse público e sem objectivo de lucros, este ponto é essencial, poderão ser apoiadas pelo estado, directa ou indirectamente.
Temos de denunciar o programa dos grandes grupos económicos que pretendem desregulamentar as relações sociais e económicas, para ser cada vez mais o seguinte princípio a dominar: quem pode pagar tem direito a usufruir, os outros são excluídos, mesmo que os equipamentos tenham sido construídos com seu contributo.
É a lei do mais forte, e não é novidade nenhuma, já existia antes de haver sociedade humana, não é preciso ser inteligente ou sensível para se elaborar esta lei ou princípio, basta sermos selvagens.Quanto mais esse princípio imperar, mais estaremos no caminho de uma sociedade mais fraca e menos justa, seremos cada vez menos humanos. No final todos acabaremos por perder, sem excepção, desde a base social até ao topo. Não tenhamos ilusões sobre isto.
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